domingo, 1 de setembro de 2013

Alfred, o mordomo



Olá, meu nome é Alfred. E não, não sou um mordomo. Sempre que digo o meu nome me dizem que Alfred é nome de mordomo. Como se Maria fosse nome de cozinheira e Ana fosse nome de mãe. O que é tão absurdo quanto. Escrevo isto, seja lá o que for, para contar um pouco do meu dia para vocês. Não que eu seja orgulhoso e pretensioso o bastante para acreditar que vocês iriam se interessar pelo meu dia, mas simplesmente porque quero! Escrevo porque quero, leia se quiser.


Como alguns de vocês podem ter percebido, não sou homem de muitos amigos. Não porque sou muito arrogante ou porque sou antissocial, mas porque o conceito amizade sofreu muitas alterações com o longo dos anos e com o avanço da tecnologia. Hoje amigos são aqueles que temos adicionados nas redes sociais. E é claro que eu não participo de nenhuma delas.

Enfim, proponho a vocês um desafio: descobrir o que sou até o final do relato desse meu dia.


Meu dia começou como todos os outros. Me levantei bem cedinho para ver o nascer do sol entre as árvores daquela praça. Me sentei no banco de sempre e me entreguei àquele deleite, ignorando completamente o barulho do trânsito.

Depois de me cansar de ficar sentado ali, fui tomar banho, depois sentei-me novamente no banco da praça. Algumas pessoas que ali passavam me ignoravam, outras me olhavam como se eu fosse um ladrão, um cara muito feio, ou como se eu não tivesse tomado banho. É claro que nenhuma das alternativas é verdadeira!

Então resolvi tomar meu café-da-manhã. Avistei ao longe alguns de meus colegas de trabalho e logo ofereci parte do meu banquete para aqueles que vejo todos os dias. Conversamos pouco. As pessoas, mesmo aquelas mais próximas, às vezes se tornam distantes, conversando apenas sobre coisas como o tempo e a bolsa de valores. Não se fala mais do interior, do que sentimos, sobre o que pensamos, o que amamos, aquilo que nos move. Para falar sobre isso é preciso pagar uma consulta com um psicólogo ou um psiquiatra, se você tiver menos sorte. Como não confio em psicólogos e não ouso gastar meu precioso dinheiro e meu tempo com isso, prefiro guardar tudo pra mim. Um dia eu explodo, mas antes explodir do que confessar meus loucos pensamentos a alguém e esse alguém trair a minha confiança. O que não seria a primeira vez que acontece.

Depois de discutir sobre a queda do dólar, meus colegas de trabalho se foram, sempre me olhando de modo desconfiado, e não demonstrando o mínimo de gratidão por eu ter dividido o meu banquete com eles. Tudo bem.

Resolvi andar um pouco para pensar. Gosto de andar, isso me ajuda a pensar e sempre estou com muitos pensamentos flutuando na minha mente. Muitas pessoas falam que sou calado. Só se for por fora... por dentro sofro e enfrento um turbilhão de pensamentos que não me deixam raciocinar direito! Fico tão ocupado pensando nos meus pensamentos, que me esqueço das pessoas ao meu redor e de que a etiqueta diz que devemos socializar com aqueles que estão a nossa volta. Talvez esse seja mais um dos motivos que me fazem ter tão poucos (ou nenhum) amigos assim.

Depois de muito andar e refletir, olhei para o céu e vi que já estava bem tarde e que iria chover, provavelmente dentro de meia hora. Sim, eu tenho relógio e não, não estava usando nesse dia. Não gosto de relógio. Eles marcam as horas. Prefiro marcar os momentos. Alguns são grandes, outros muito curtos, mas levo minha vida assim, contando os momentos. Se contasse os minutos, estaria velho e caduco, pois o tic-tac do relógio provavelmente me enlouqueceria.

E como eu sabia que iria chover? Não precisa ser um meteorologista para olhar para o céu e ver nuvens de chuva. E sim, eu tenho o costume de caminhar ao ar livre e observar tudo ao meu redor, inclusive as mudanças que ocorrem no ambiente e no tempo.

Começou a chover, mas ao contrário do que vocês pensam, eu não corri para me proteger da chuva. Continuei andando e pensando. Não sei porque, mas esse foi mais um dos motivos para as pessoas me olharem com olhos atravessados. Como se andar na chuva fosse um crime ou coisa de gente louca. Seja o que for, eu gosto e andei na chuva porque quis. Ninguém tem nada a ver com isso.

A chuva durou menos tempo do que imaginei, logo o sol apareceu outra vez, bem mais quente e mais insuportável. É difícil suportar essas mudanças climáticas repentinas, mas como tudo na vida, a gente acaba acostumando.

Resolvi que estava com fome, peguei algumas moedas (esqueci o meu cartão de crédito e o de débito) e comprei o que seria o meu almoço. Almocei sossegado, sem me preocupar em oferecer para ninguém e fiquei pensando enquanto fazia o desjejum.

Sabe, caros leitores, às vezes sofro muito. Porque ora sou muito atento e consigo enxergar até a menor presilha do cabelo de uma jovem que passou correndo ao meu lado ora sou muito desatento e olho para tudo e para todos e não vejo nada além de borrões. Só consigo enxergar as coisas e as pessoas, se faço muito esforço, mas mesmo assim as enxergo bem por pouco tempo. Como se tudo estivesse numa névoa e eu não conseguisse me achar, me guiar. Então vivo nesses dois extremos, sem saber quando vai ser um ou outro e sofro muito com isso. Porque nem sempre esses dois extremos respeitam as minhas necessidades.

Meu sentido aguçado me livrou desses pensamentos, pois vi um policial se aproximando, com um olhar nem um pouco amigável. Como não tinha motivos para temê-lo, permaneci onde estava e ele veio ao meu encontro. Não me disse bom dia, nem perguntou como eu estava, simplesmente me revistou e me mandou sair de onde estava. Revoltado, eu obedeci. Não adianta discutir com certas pessoas sobre certas coisas, ainda mais quando essas pessoas acham que estão cheias de razão ou quando essas pessoas são autoridades, com as quais você não pode ousar brincar. Sou muito realista para saber que brigar por uma coisa dessas não ia adiantar em nada além de muita confusão para o meu lado.

Voltei para o meu lar, já era noite e estava frio, mas não me aqueci com roupas quentes, me acostumei a sentir o frio roçar a minha pele, como um carinho de uma velha amiga.

Peguei o jornal do dia, o amassei e fiz uns aviõezinhos. Sabia que ali não teria nada de útil além de morte, violência e mulheres nuas.

Já descobriram o que sou até esse ponto? Se não, sinto muito. Na verdade não sinto não. As próximas linhas revelam a tão verdadeira parte da história de todos os meus dias.


Estava sonhando. Havia tempos que não sonhava. Sonhei que morava em uma casa melhor, não maior, apenas melhor, onde teria tudo aquilo que eu julgava precisar. Nessa casa também havia uma esposa, a minha esposa e meus filhos. Três crianças marrentas e com bochechas vermelhas correndo para me abraçar. Enquanto a minha linda esposa me abraçava e eu sentia um calor que há tempos não sentia (o calor de um abraço), acordei.

Alguém estava me chutando, me xingando e me humilhando. O calor que eu havia sentido era o de urina. Eu estava sangrando de tanto apanhar e minha visão estava turva. Só consegui ouvir as últimas palavras do meu agressor, antes dele ir embora.

- Aqui não é lugar para mendigos.

Não há lugar para mim, e nunca haverá, em lugar algum.




E com esse último pensamento, me entreguei ao maior de todos os sonhos, o sonho em que a gente nunca acorda, porque pensamos que ele é real. O sonho em que tudo é mais leve e tudo dá mais certo. O sonho em que não é preciso sonhar. Um sonho sem sono.

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