quarta-feira, 6 de abril de 2016

Eu uso óculos!




A sala estava mal iluminada, com móveis escassos e velhos pelo uso. Uma pequena camada de poeira revestia aquele ambiente. Em um canto no chão havia um pedaço de papel amassado, com palavras que ainda desconhecemos. Ao centro havia um espelho e nele um reflexo. O reflexo era de um homem de seus trinta e poucos anos, com barba por fazer, uma marquinha no nariz, entre os olhos, indicando o uso de um óculos. Seu cabelo era abundante, porém estava bastante bagunçado. A expressão daquele homem para seu próprio reflexo era de total indiferença. Ele simplesmente não se reconhecia ali. Como podia ter tanta certeza de si, de seus ideais, mas não se reconhecer em seu próprio reflexo? O que havia de errado?

Tom deixou de encarar seus próprios olhos, tomou um banho e se ajeitou. Não pertencia àquele corpo, não pertencia à lugar algum. Abriu a porta daquele aposento, que os outros se referiam como casa e foi para a rua.


As pessoas, sempre apressadas, não enxergavam mais que um palmo à sua frente, com o pescoço num ângulo agudo, mirando pequenos aparelhos luminosos. Os carros sempre barulhentos, continuavam a passar. Tudo na sua devida "normalidade", tudo dentro das normas. No ar, além da poluição, havia aquele clima de pressa. Pressa para chegar em todos os lugares e em lugar algum. Havia também um clima de desconfiança. Quando as pessoas, sem perceberem, deixavam de olhar aqueles aparelhos para olharem umas às outras (em curtos espaços de tempo) se deparavam com o reflexo dos próprios olhares. Olhares vazios e de desconfiança. Mas não um vazio qualquer. Um vazio que não quer ser preenchido. E não uma desconfiança qualquer, mas a desconfiança de que aquela outra pessoa seja exatamente como você e em então você tem medo! Quanta insegurança!

Imagina outra pessoa como você! Com os mesmos pensamentos obscuros, esses mesmos que você escondeu debaixo do tapete!

Voltando ao Tom, ele caminhava observando tudo isso, enquanto tinha uma leve ideia de si mesmo. O quão diferente ele era daquelas pessoas? Não, não poderia se deixar contaminar por aqueles pensamentos. Enquanto jogava alguns pensamentos debaixo do tapete, uma mulher foi falar com ele. Após conseguir voltar pra realidade e entender o que estava acontecendo, conseguiu captar o que ela estava lhe dizendo.

- (...) realmente você está bem diferente, Tom!
- Não uso mais óculos.
- Ah... deve ser isso mesmo!



A partir daí a mulher continuou a falar, mas Tom nada escutava. Já estava longe, refletindo na nova realidade que se apresentava, diante da falta dos óculos. Que curioso! Ao deixar os óculos em casa, estava enxergando mais! Vendo as coisas exatamente como são.

Que horror! A realidade era como uma luz chata e intensa que incide diretamente sobre nossos olhos e que nos faz piscar, lacrimejar e desviar o olhar!

Teimoso, Tom deu mais uma olhada em volta e era aquilo mesmo! Pessoas vazias e indiferentes, vivendo rotinas vazias e indiferentes. Dizendo para elas mesmas que tudo aquilo era justificável e que não poderia ser de outra maneira.

Tom se perguntava quantas coisas deixou de ver por usar óculos. Quanta verdade havia lhe escapado? Não era possível responder. Mais triste e mais confuso voltava para casa. Algo estava errado! A realidade não poderia ser daquela forma, nua e crua! Mas nem todos sabem apreciar a beleza das formas, as arestas da vida e o espinho incômodo no dedinho do pé, que é a verdade. Mas o que é verdade? E o que é a verdade?

- CHEGA!

O coitado do espelho levou um murro, sendo rachado em diversos pedaços e mostrando diversos rostos de Tom. Então ele pegou seus óculos e os colocou.

Olhou ao redor e viu um belo lar, uma sala bem iluminada, cheia de móveis novos e limpos. Ao centro da sala bem imobiliada estava um lindo espelho ornamentado e nele havia um reflexo. O reflexo era de Tom, um homem de trinta e dois anos, de boa aparência, a barba bem feita, cabelos penteados e lindos olhos azuis. Como podia ser tão certo de si e de seus ideais? O que poderia dar errado? Nada!

Confiante, Tom saiu de casa e logo viu vários amigos, todos cheios de coisas muito interessantes para fazer e sempre muito atenciosos um com os outros.

- Tom! Você está irradiante! Mudou o shampoo? - perguntou uma mulher, amiga de Tom, que havia se aproximado.
- Mudei! Agora eu só uso Sedoso.
- Ah! Que surpresa agradável!
- Gostaria de entrar e tomar uma bebida?
- Ah! Claro que sim! Sei que não incomodo.
- Claro que não! Entre!

E então Tom, que mal havia saído de casa, retornou com uma visita amigável. Ficaram horas falando sobre coisas interessantes como trânsito, rotina, ggsister e baladas.

Ah! Como a vida de Tom era agradável! Ele usa óculos!

Não sei se recordam, mas havia um pedaço de papel amassado em um canto da sala. Nele estava escrito os seguintes dizeres em caixa alta: NÃO USE ÓCULOS!

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