sexta-feira, 4 de março de 2016

Memórias de um amador

Este é o primeiro relato que farei. Meu nome é Heitor, tenho um allstar preto e velho companheiro, minha blusa vermelha favorita, muitos fios na cabeça, algumas décadas na mochila e muita história para contar. Primeiramente vou explicar o título deste relato. Memórias, pois vou narrar fatos ocorridos. Agora vem a parte difícil: amador. Segue a explicação do dicionário: 

1. Que ou o que ama: amante. 
2. O que, por gosto e não por profissão, exerce qualquer ofício ou arte. 
3. Apreciador. 

Acho que a palavra foi mais ou menos bem descrita, eu apenas acrescentaria um quarto significado: 4. O que ou quem ama dor. 


Enfim, sou um amador em todas as concepções da palavra. Um pouco mais em umas do que em outras, mas ainda assim amador. Este meu primeiro relato irá mostrar como conheci o ser mais sábio que já tive notícia, Erik, o gato de uma senhorinha de quase um século e nenhuma papa na língua. 



Foi nas férias de julho. Estava viajando só, como de costume. Fui para outro país, que agora me foge o nome. Foram muitas horas de viagem, a pé, de carro e de avião, mas valeu a pena. E adianto que não foi a vista que valeu a pena. 
Fiquei em um hotel que, milagrosamente, supriu as minhas necessidades. Ficava de frente para uma praia de tempo nublado e humor bipolar. A dona do hotel, a tal senhorinha, se chamava Eva, uma imigrante sueca muito ativa e impaciente. A vi no segundo dia em que estava hospedado, ela estava sentada em uma cadeira de balanço, usando óculos escuros, com os cabelos ralos presos em um rabo de cavalo e no colo um gato muito suspeito, chamado Erik. 
Sentei-me ao lado dela e apesar de não ser muito de conversar, senti uma vontade enorme de puxar conversa com a velhinha. 



- Olá! - eu arrisquei, porém ela apenas me ignorou. Erik me lançou um olhar perigoso. - Olá? - eu tentei novamente. 
- Olá, meu filho. 
E então a conversa morreu aí. Nos dias seguintes tentei puxar conversa novamente, mas sempre acontecia a mesma coisa, da mesma forma. Isso inicialmente me deixou intrigado, depois fiquei profundamente irritado. Acordei determinado para arrancar mais palavras daquela senhora. 
- Qual o seu nome? 
- Não é da sua conta. Mas como hoje acordei de bom humor e Erik também - Erik estava correndo atrás de um pedacinho de papel que caíra no chão - irei dar corda para ver quanto tempo demorará para... Ah, deixa pra lá! Meu nome é Eva. E não me diga o que seu, porque isso não me interessa e não é da minha conta também. 
- Meu nome é Heitor. 
- Ah... homens. Se quer que eles façam algo, diga para que não o façam ou que não faz questão. 
- Me desculpe, Eva, mas desde que me hospedei em seu hotel venho tentando iniciar um diálogo com você. 
- E por quê? Há tanta coisa que um jovem como você, com minhocas na cabeça, pode fazer em um país estrangeiro e em uma praia com essa. 
- Eu sei... mas nada disso me atrai. Às vezes me sinto um velho, sem ofensas. 
- Sem ofensas. Hunf! Se você se acha um velho, então velho você é! Mas não precisava que eu dissesse isso. 
- Eu sei... é que às vezes sinto que falta algo em minha vida. Sinto que não estou completo, que estou pela metade, mesmo sem saber de quantas metades sou feito. 
- Eu sei exatamente o que está acontecendo! 
- O quê? 
- Sente falta de alguém. Mas agora é hora de entrar, porque senti aquela dorzinha nas juntas e isso significa obviamente que uma tempestade vem aí. Vamos entrando. 
Nos acomodamos em poltronas confortáveis e tomamos uma bebida quente. Estranhamente caiu uma tempestade. 
- Vou te contar uma história que faz parte do meu folclore, talvez te ajude. - Então me recostei na poltrona e me preparei para a história - Era uma vez e ainda há de ser a vez em que um menino astuto perguntou para um velho sábio o que era preciso ser feliz. O velho sábio disse que nunca viu um pescador triste. Então o jovem se tornou pescador, mas continuou triste. Tempo depois foi ter com o velho e o velho disse que nunca viu um caçador triste. Então o jovem virou caçador, mas continuou triste. Então o velho disse que nunca viu uma criança triste. Então o jovem passou a agir como criança, ficou feliz por um tempo, mas logo voltou a familiar tristeza. Desesperado e sem mais saber o que tentar, resolver falar com o velho pela última vez, mas o velho havia morrido. 
Nessa hora a Eva fez uma grande pausa e eu esperei pacientemente. Mas quando essa pausa passou de 20 minutos, percebi que ela havia cochilado. Pensei em acordá-la, mas achei melhor seguir o meu caminho. Outra hora falaria com ela. O que eu não sabia era que a história havia terminado daquele jeito mesmo e que Eva havia fingido que caíra no sono, só para não ter que me dar explicações, inclusive do por quê daquela história ser do jeito que era e de ter terminado daquela forma. 



No dia seguinte acordei bem cedo, tomei um café da manhã esplêndido e fui caminhar nas margens da praia. Apesar da paisagem ser incrível e o clima agradável, me sentia mal. Era como se uma mão invisível estivesse apertando o meu coração e contraindo o meu estômago. Era um aperto tão forte, mas tão forte, que cheguei a cogitar a possibilidade de procurar um médico. Me perdi em pensamentos e o que me tirou deles foi o Erik. Ele estava correndo em minha direção. Sim, eu sei que a cena de um gato correndo na praia, tentando evitar a água é muito estranha, mas é a cena que eu vi. Então percebi também que a dona dele, Eva, estava logo atrás e passou a me fazer companhia durante essa caminhada. 
- Poderia te fazer uma pergunta, Eva? 
- É sobre a história? Por que se for... 
- Eu acho que entendi o recado... da história, quero dizer. Se o menino tivesse tentado ser um peixe provavelmente teria encontrado a felicidade. Você já viu um peixe triste? 
- Ora! Acho que você fala essas baboseiras porque está apaixonado por um. 
- Por um peixe? 
- Exatamente, não é, Erik? Foi ele quem me contou. - Erik parecia ter entendido o que a dona disse. Então, pulou nas águas e voltou com um peixe na boca. Tadinho do peixinho... 
- Erik te contou mais coisas? 
- Erik me conta tudo, ele sabe de todas as coisas de todas as pessoas, Heitor. 
- E o que mais ele sabe sobre mim? 
- Sabe que o seu peixinho mora fora d'água e que apesar de estar longe de você, está bem perto, tão perto, mas tão perto, que se você fizer um esforço muito grande para perceber, irá ficar caolho e não conseguirá ver do mesmo jeito. Existem certas coisas na vida, Heitor, que por mais que a gente tente, a gente nunca vai perceber. Todos temos nossos pontos cegos, menos Erik, Erik sabe de tudo. O ponto cego de algumas pessoas é o próprio nariz (o que é triste, pois elas não percebem como as melecas podem incomodar as outras pessoas), outras tem o umbigo, outras tem os próprios erros como ponto cego, outras tem a mente, outras tem o coração... 
- Oh - foi tudo o que eu consegui dizer, pois fiquei imaginando qual seria o meu ponto cego. Então eu descobri! Acho que descobrir o nosso ponto cego já é um grande passo, pois ainda há aqueles que nem ao menos sabem que têm um ponto que não conseguem enxergar! 
- Vejo que você descobriu o seu ponto cego! 
- Como sabe disso, Eva? 
- Primeiro, eu não sou cega. Na minha idade não preciso usar óculos, agora veja só você! Quem é o velho agora? E segundo, Erik me contou. - fiquei imaginando quando foi que Erik contou alguma coisa para ela e eu não percebi... - Agora me responda, por que está tão longe do seu peixinho? 
- Oh... Não sei... pensando bem agora acho que eu queria me afastar dela. - neste momento Erik parou de brincar com o que quer que fosse e me lançou um olhar de reprovação, se é que isso era possível - Não me olhe desse jeito, Erik. Ela não me ama! 
- Como pode saber disso? Ela já te disse que não o ama? 
- Não. E também não disse que ama. 
- Mas você já perguntou? 
- Não... mas é que... esse tipo de coisa a gente percebe, sabe? 
- Ah, é mesmo? Percebemos, Erik? O Erik disse que nem sempre, nem todos. 
- De nada adianta todo esse papo furado, ela não está aqui mesmo. 
- Não está? - dizendo isso a Eva tocou o lugar em que supostamente está o meu coração, em seguida tocou a minha cabeça, que suponho que ela quis dizer mente. 



Depois disso fiquei muito pensativo. É impressionante como alguns pensamentos podem nos tirar da realidade por horas a fio! Logo agora que estava até gostando daquele lugar... 


Fiquei muito amigo da Eva e do Erik, eles eram uma dupla e tanto e por muitas vezes eles ajudaram a camuflar a dor que sentia no peito e a nuvem que pairava na minha mente. Era uma nuvem no formato de um peixe.


Um dia fomos jantar, eu, Eva e Erik. Escolhemos um lugarzinho, perto do mar mesmo. O restaurante estava lotado e fiquei impressionado com o fato de que ninguém se importou em jantar ao lado de um gato, um gato preto. As pessoas não pareciam ser muito supersticiosas por ali, até que isso não era ruim. 
Estávamos em uma conversação calorosa quando o meu telefone tocou. Mas não podia ser possível! Era ela! Fiquei tão abismado e sem saber como reagir que quase não deu tempo de atender o telefone, de tanto que ele ficou chamando... A ligação não durou muito tempo, já que estávamos em países diferentes. Ela disse que sentia muito a minha falta e perguntou se eu sentia a dela também. É claro que eu sentia... Ela foi muito falante, quase não deixou eu falar e eu acho que mesmo sem perceber talvez acabei demonstrando certa indiferença na voz, mas indiferença não era o que eu sentia, pode ter certeza disso! 
- Ela te ama! - disse Erik. Espera! O Erik disse alguma coisa para mim! Meu Deus! Eu estava ficando louco. 
- Erik gosta muito de você para falar assim, diretamente. Ele nunca falou diretamente com estrangeiros antes, sinta-se lisonjeado. - realmente eu estava ficando louco. 
- Se ela me ama, por que então ela não diz? 
- Talvez porque ela ache que seja óbvio e o óbvio não se diz, porque é óbvio, não é óbvio? 



Pensei que às vezes seria bom dizer as coisas, mesmo que elas fossem óbvias, mas percebi que nem tudo que é óbvio para um é para outro, então me lembrei dos pontos cegos e enxerguei as coisas claramente, como em passe de mágica. Mas não é possível ter certeza das coisas quando elas ficam subentendidas. Enfim, decidi que isso não importa, pois eu a amo e isso infelizmente não irá mudar, no caso dela não me amar também. 


Na semana seguinte fiz as malas com um sentimento confuso no coração. Estava triste porque a viagem tinha acabado, mas estava feliz porque a veria de novo, mas estava triste porque não sabia se ela me amava ou se ficaria feliz em me rever também... Guardando todos esses pensamentos na mala peguei o primeiro avião que iria para o meu país de origem. Depois disso ainda tive que esperar mais dois dias antes de vê-la. 


O grande dia chegou, era impossível não ficar ansioso e imaginar milhares de situações hipotéticas em minha mente. As horas passavam como chumbo... Quando finalmente a vi, perdi o fôlego momentaneamente. Apesar de igual, ela estava muito diferente, se é que isso faz algum sentido. Assim que me viu, ela se lançou em mim como uma bigorna e eu cai um pouco pra trás. Quando ela se soltou, vi que estava meio sem jeito e ficamos os dois sem jeito. Então a abracei de novo. Não a soltaria por nada nesse mundo, por nada! Eu carregaria o mundo por ela! (Eu sei que existe o Atlas e ele já carrega tudo, mas deixe eu me perder nas minhas próprias ilusões, ok?) 


Então quando nos soltamos em vez de dizer algo legal, tipo "Estava morrendo de saudades", eu disse "Peixe". Ria de mim, leitor, ria muito, porque eu também ri! Eu rio de tudo! Ri muito, ela também, mas depois ela começou a ficar meio vermelha de raiva, então achei melhor parar de rir. 
- Peixe? - ela me perguntou. 
- Peixe. - eu respondi. 

Semanas depois eu recebi uma carta. A transcrevo abaixo: 
Heitor, 
Eu e Eva sentimos muito a sua falta, você até que foi uma companhia legal. Espero que tenha pescado o seu peixe, pois eu pesquei o meu! 
Meow, Erik. 

Ah... vale dizer que dois dias depois do reencontro ela partiu. Isso mesmo! Aí aquela história do menino e do velho passou a fazer mais sentido ainda. O velho morreu. O peixe partiu e eu não virei pescador. A vida é assim, como dizem "Um dia é da caça, o outro do caçador". 



Vale dizer também que eu a amo. Eu a amo, ok? Caso você esteja lendo o meu relato, eu a amo... Mas como o Erik costuma dizer: "Vocês humanos amam muitas coisas e você, Heitor, tem a memória de um peixe". Talvez eu mudaria o final da frase para algo do tipo "Tenho na memória um peixe". 


Até! 

Nenhum comentário:

Postar um comentário